A pesquisadora Yvonilde Medeiros defende que a água
não pode ser objeto de especulações financeiras
Em dezembro do ano passado, Yvonilde
Medeiros apresentou os resultados de seu estudo sobre o rio São Francisco,
durante um encontro do comitê da bacia hidrográfica, em Maceió. A reação da
plateia, ela lembra, "foi de perplexidade". Professora do curso de
engenharia ambiental da Ufba e doutora em hidrologia pela Universidade de
Newcastle, na Inglaterra, Medeiros é uma das fortes vozes a propagar "o
quadro alarmante" do rio. Um cenário onde, segundo ela, somam-se os
efeitos provocados pelo setor elétrico, a retirada de água para a agricultura e
o projeto de transposição - obra que, mergulhada em dezenas de aditivos
contratuais, viu seu orçamento saltar dos R$ 4,7 bilhões inicialmente
previstos, para R$ 8,2 bilhões; a obra mais cara do país tocada com recursos
exclusivos da União. Nesta entrevista à Muito, a pesquisadora expõe
detalhes da situação do São Francisco e da crise hídrica no Brasil.
As cidades de São Paulo e Rio de
Janeiro aproximam-se de um colapso no abastecimento de água. Até que ponto este
é um problema localizado?
O que hoje se chama de crise hídrica sempre houve no Nordeste e até no Sul do
país. Não chamávamos de crise hídrica, e sim de seca. Mas a visibilidade do
Nordeste não é a mesma. O que já acontecia em outras partes do país, desde que
a gente se entende por Brasil, agora acontece na vitrine. Aí o problema
ganhou a gravidade necessária. Os chineses dizem que crise é
oportunidade. Talvez esta seja uma oportunidade para que o Brasil entenda
que, apesar de ter imensa riqueza hídrica, pode chegar à escassez.
E como um país com um dos maiores
reservatórios de água do mundo chega a este cenário?
Isso não acontece por falta de legislação, nem por falta de instituições. Mas,
sim, por falta de decisão política. O Brasil tem uma das leis mais completas e
modernas do mundo em relação à água. Quando se fala em modelo de gestão de
recursos hídricos, o Brasil não tem nada a dever. Mas essa legislação, que vem
no bojo da Lei de Águas, de 1997, não se implantou de fato. A crise hídrica foi
detectada nos anos 1980. E o grande motivador para que a Lei das Águas saísse
foi, justamente, São Paulo. O que me espanta é o espanto. Por que as pessoas
estão surpresas com a crise de água em São Paulo, se ela foi a grande
motivadora de todo o aprimoramento na legislação? A crise é uma realidade, é
algo que falamos há 30 anos.
Megaobras, como a transposição do rio
São Francisco e o sistema Cantareira (SP), enfrentam graves problemas. Medidas
de pequena escala são mais eficazes para solucionar a questão hídrica?
O Brasil tem um histórico de grandes obras porque elas aparecem politicamente.
E a própria sociedade parece depositar mais fé nelas. Sugerir pequenos reparos
parece soar, para a população, como uma fuga ao problema. Isso é
cultural. Cavar poços públicos e consertar os vazamentos nas tubulações
do sistema são medidas de menor escala - que ainda não foram realizadas -, mas
que, em menos de um ano, poderiam reduzir gigantescas perdas de água.
Quanto, no nível dos reservatórios, é
decorrência da falta de chuva?
Estamos vivendo, de fato, um período de baixa pluviosidade. O que observamos é
uma tendência de escassez como nunca tivemos desde que os dados
pluviométricos passaram a ser registrados, há 100 anos. No entanto, não há como
responsabilizar a chuva. Ela pode ampliar o problema, mas não é a causa dele.
Em 1970, os pesquisadores já alertavam para o crescimento da demanda por água
no Brasil, independentemente da quantidade de chuva.
A Embasa estuda estabelecer parcerias
público-privadas. Como a senhora avalia esse modelo de negócio?
Penso que a água é estratégica demais para ser objeto de especulação
financeira. Mesmo nos países mais capitalistas do mundo, como a Holanda, as
empresas de abastecimento são públicas.
As indústrias deveriam pagar mais?
A lei prevê isso - prevê que haja cobrança diferenciada para quem usa a água
para atividade produtiva. Os grandes consumidores e a perda de água por
falta de manutenção do sistema representam os maiores gastos. A indústria
deveria pagar mais. Na prática não paga.
A Agência Nacional de Água divulgou
um artigo sobre a situação hídrica na Bahia, onde consta que "22% dos
municípios apresentam condições satisfatórias para atendimento da demanda de
2015". É um número baixíssimo, não?
É um número baixíssimo, mas que pode ser ainda menor, se levarmos em conta a
qualidade. O uso de uma tecnologia obsoleta de tratamento, com doses cavalares
de cloro, e a negligência no saneamento são recorrentes. Que tipo de água está
sendo entregue a essa população? É algo que precisa ser investigado.
No ano passado, a senhora concluiu um
estudo sobre o Baixo São Francisco. Que resultados encontrou?
A população ribeirinha vive de forma completamente diferente hoje. Há dez, 20
anos, pescavam na época das cheias e plantavam na época de baixa do rio. O
ciclo de produção e o modo de vida deles variavam de acordo com o ciclo
natural. Depois vieram as hidrelétricas, a irrigação, as barragens - de
Sobradinho, Santa Maria, Paulo Afonso, Itaparica, Xingó -, que alteraram
a natureza do rio. Hoje, há municípios-fantasmas em torno do São Francisco. A
população ribeirinha não consegue mais viver da pesca.
Como a obra de transposição vem
colaborando com este processo?
Ela chegou quando o estrago já estava feito. A transposição é mais um usuário
que tira água do rio. E vai tirar numa quantidade que a gente ainda não sabe. O
projeto prevê 26,4 metros cúbicos de água, mas as dimensões dos canais
permitem passar 125 metros cúbicos.
A extinção do rio é uma
possibilidade?
Depende de como se define "extinção". Água sempre haverá no rio. Mas
em que quantidade? E essa quantidade será capaz de alimentar o bioma local?
Essas são questões que podem definir a "extinção". O que posso
afirmar é que a vida, no São Francisco, está sendo alterada. A pesquisa
da qual fiz parte dedicou-se a entender qual é o volume mínimo necessário para
atender à preservação e manutenção do ecossistema aquático. Então, criamos um
ideograma e, hoje, discutimos isso com o Comitê da Bacia Hidrográfica do São
Francisco (integrado pelo poder público, sociedade civil e empresas). A ideia é
implementar uma prática, na gestão do rio, que permita a existência desse
volume mínimo. Não é fácil obter isso. Trazer mais água para o meio ambiente e
para as comunidades ribeirinhas implica uma restrição, por exemplo, para as
hidrelétricas. O poder do comitê ainda está baixo. Ele não senta junto ao
Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) com poder de igualdade. Deveria ter
um peso político e institucional que permitisse exigir do setor elétrico a
consideração pelos outros usos da água do rio. Embora a legislação diga,
claramente, que a prioridade é o abastecimento humano, o setor elétrico, no
Brasil, se coloca acima de tudo - e isso acontece porque existe um arcabouço político
e institucional que garante esse poder.
A senhora acredita que o brasileiro
está preparado para reduzir o consumo?
Não. Temos baixíssimo nível educacional, e economizar passa por educação. Se
dependemos da água e ela é limitada, o consumo deve ser limitado. Temos que
apreender desde cedo a viver com isso. Quanto cada um pode usar? Quanto temos?
Quanto está disponível? São questões que ainda não entraram na vida cotidiana.
A crise, ironicamente, pode ser boa neste aspecto.
Fonte: http://atarde.uol.com.br/muito/noticias/1670682-a-crise-hidrica-e-conhecida-desde-1980-diz-pesquisadora